Está a celebrar 50 anos de cantigas. Ao SOL, falou das suas músicas e da sua vida.
Diz que é músico, que toca voz. É diferente um cantor de um músico que toca voz?
É, mas não é fácil explicar porquê. Digo que toco voz porque tento, em determinadas cantigas e em determinadas partes do que faço, utilizar a voz como um instrumento.
Tema ‘Flor Sem Tempo’: ‘Olha o mar na tarde calma, ouve o que ele diz. Canta o sol que tens na alma’. Tem sempre o sol na alma ao cantar?
Na maioria das vezes, sim. Mas há sítios em que é impossível porque não há condições para isso. Depende do lugar e do tipo de público.
Alguma vez sentiu que estava a mentir em cima do palco?
Já dei por mim a despachar serviço por causa da falta de condições. Mas a mentir, não. Até porque me irrito e se estou irritado não estou a mentir, não estou a fingir.
Deixe-me pegar na letra do ‘Gostava de Vos Ver Aqui’: ‘Às vezes, vocês daí nem sonham o que vai para aqui. Nem pensam que na vossa frente, quem canta, quem vos diz as coisas, também é gente’. Isto significa que às vezes é preciso dar concertos estando completamente destroçado por dentro?
Significa que isto é uma profissão como outra qualquer. Depois disso vem: ‘Gente que trabalha como um carpinteiro, como um camponês ou como um mineiro’. As pessoas não devem dar-nos uma importância especial. Nós cantamos e outros fazem medicina. Somos gente porque somos iguais aos outros.
Mas fazer música implica um outro envolvimento emocional ou não?
Sim, mas estou a falar no respeito pelas profissões. Todas as profissões merecem respeito e todas implicam dedicação e trabalho. Ser músico é igual a ser mineiro.
Aconteceu-lhe muitas vezes ter de cantar quando estava destroçado?
Isso leva-me a pensar num dos dias mais estranhos da minha vida a esse nível. Se não estivesse seguro de mim, provavelmente não lhe falaria disto, porque corro o risco de ser mal entendido. Eu fiz um espectáculo na noite em que a minha mãe estava a ser velada na igreja, porque sou profissional. Tive de o fazer. Estava combinado e muita gente dependia disso. Saí de carro, fui cantar e voltei para a igreja. Falta de respeito? Não. Pelo contrário. Respeito pelas pessoas. Respeito pela minha mãe, porque esses foram os princípios que ela me ensinou. Acho que só haveria uma situação em que não conseguiria cantar, que seria a morte repentina, em cima de um espectáculo, de um filho ou da minha companheira. A minha mãe já estava doente há três ou quatro meses e achei que devia fazer o concerto.
Enquanto cantor, como se compara hoje com aquilo que era há 20 ou há 30 anos?
Cantar, tal como viver, é um acto de inteligência. Por isso devemos preparar-nos, ao longo dos anos, para a falta de faculdades. Há cantigas do meu repertório – que sou obrigado a cantar porque as pessoas as querem ouvir e eu devo-lhes isso – que passei a cantar alguns tons abaixo. O brilho da voz perdeu-se, não é o mesmo.
Mas ganhou outras faculdades?
Ganhei todo um conhecimento, toda uma experiência. Até há 15 anos tremia como varas verdes quando ia para cima de um palco. Isso deixou de me acontecer. Tenho muito mais segurança.
Em 1963 foram formados os Sheiks – consigo, com o Fernando Chaby, o Carlos Mendes e o Jorge Barreto. Como se conheceram e como decidiram começar?
Eu trabalhava na tal companhia de seguros, na Baixa, e estudava à noite. Mas muitas vezes, em vez de estudar à noite, faltava à noite. Para fazer tempo e a minha mãe não perceber que eu andava a faltar, ia a pé para casa. Subia a Almirante Reis e parava na Alameda, onde estavam o Chaby, o Carlos Mendes, o Jorge Barreto. Começámos ali, com umas violas nuns bancos de jardim. Perguntaram-me se eu sabia tocar viola. Como disse que não, fui para a bateria.
Mas sabia tocar bateria?
Não, mas estupidamente pensávamos que era um instrumento facílimo de tocar. Quem não sabia tocar viola ia lá para os paus [risos]. A primeira vez que me sentei numa bateria foi uma confusão enorme. Percebi que tinha jeito, mas que não sabia tocar. A partir daí havia que aprender minimamente. E aprendi na prática, ali, a batê-las todos os dias.
Nos Sheiks também fazia segundas vozes. Tinha vergonha de cantar?
Tinha. Eu, aliás, tinha vergonha de aparecer em qualquer lado. Não faz ideia da dificuldade que era, depois de começar a ser conhecido, entrar num café. A malta toda a olhar para mim era uma coisa do arco-da-velha. Só venci isso há 20 ou 25 anos.
Quando começaram a aperceber-se do sucesso?
Com o primeiro EP, o Summertime [1965].
Quando formaram os Sheiks, tinham dentro de vós o imaginário dos Beatles?
Nós nem conhecíamos os Beatles. Acho muita graça a essa história dos Beatles portugueses. Nós fomos sempre ‘o qualquer coisa’ de fora.
Muitas vezes falam de si como o Sinatra português…
Que eu detesto. Não detesto que me chamem o Sinatra português, não gosto é do Sinatra. Admito que terá sido o pai dos cantores brancos daquele tipo de música, a sua importância está fora de questão. Mas se tivesse que escolher entre o Sinatra e o outro escolhia o outro. O outro é o Tony Bennett. Mas os meus cantores foram sempre negros. O pai de todos eles é o Ray Charles. Depois vem o Al Jarreau, o Stevie Wonder, o Bobby McFerrin. São todos pretos.
No início já tinha a certeza de que queria viver da música?
Não. Só tive essa certeza quando saí da companhia de seguros. Mas foi uma opção tomada contra a família. Trabalhar numa companhia de seguros era uma coisa segura e cantar era uma coisa de malucos.
Há muitas histórias engraçadas com as fãs dos Sheiks?
Há, com certeza, mas o tempo era outro. Não vamos pôr isto no mesmo patamar das bandas inglesas. Cá as meninas não saíam de casa com tanta facilidade.
E havia drogas?
Devia haver charros. Acredito que sim. Mas, palavra de honra, que só experimentei já com quarenta e tal anos. Experimentei duas vezes e aquilo não me fez nada.
E é verdade que, depois de ter apanhado uma bebedeira aos 15 anos, só voltou a beber aos 40?
Sim. Nessa bebedeira misturei cinco qualidades de álcool.
Foi com os Sheiks?
Não, foi na despedida de um amigo que foi para Angola. Felizmente que isso aconteceu, porque até aos 40 e tal anos – apesar de fumar muito – nunca mais bebi. Depois parei de fumar e, como compensação, comecei a apreciar um bom vinho tinto. Mas não bebo bebidas brancas. E mesmo uísque só gosto do de malte, o normal não aprecio.
Que relação tem hoje com a noite?
A noite é o melhor que há, seja em casa sozinho a ler, a olhar para ontem, a pensar, ou numa belíssima conversa com um grupo de malta amiga. Mas a noite de rua, hoje em dia, não sei como é, não faço ideia. Deve ter encantos para a malta de agora, como tinha no meu tempo. Talvez seja menos segura, não sei.
Via Sol